Partilhamos aqui o comentário e leitura sobre o papel dos países emergentes (asiáticos) em evitar dez anos atrás uma segunda Grande Depressão, na série de artigos publicados pelo Jorge Nascimento Rodrigues e pelo João Silvestre no Caderno de Economia do Semanário Expresso.
O papel da China como fator contracíclico e mitigador dos efeitos da crise financeira global foi decisivo. A economia chinesa cresceu com uma taxa anual média de 9,5% em 2008 e 2009, os piores anos da crise. Apesar deste nível de crescimento ser inferior aos 12,8% observados em média nos três anos anteriores à crise financeira global, esta não difere significativamente da média de longo prazo observada desde a década de 80, que é de 10%. De facto, se retirarmos o contributo direto da China para a taxa de crescimento do PIB mundial observada em 2009 (calculada em paridade do poder de compra e a preços correntes), esta teria afundado de 1,0% a -0,3%. Nesse caso, a economia mundial teria encolhido em 2009, e teria registado o menor nível de crescimento em todo o pós-Segunda Guerra Mundial (dados retirados a 6 de agosto de 2017 da World Bank Open Data database). Importa ainda referir que neste cálculo apenas retiramos a China da taxa de crescimento mundial, sem entrar em consideração com os impactos indiretos, mas também benignos e sem dúvida significativos, que, por exemplo, a procura chinesa por matérias-primas terá tido em países como a Austrália ou o Brasil.
O papel da China como fator contracíclico e mitigador, altamente resiliente a crises globais e regionais, não se limitou no entanto à crise financeira global de 2008-2009. De facto, importa referir como a China tem contrariado sistematicamente, pela positiva, as previsões de abrandamento do crescimento projetadas para a sua economia, especialmente em períodos de crise.
Em primeiro lugar, recuemos mais dez anos no tempo, de 2007 a 1997. A crise financeira asiática, que depois arrastaria à América Latina, afetou profundamente os níveis de crescimento observados na região, sendo especialmente marcada na Indonésia, Tailândia, Malásia, e Coreia do Sul, com quebras do PIB de 13,1%, 7,6%, 7,4% e 5,5%, respetivamente, em 1998. Todas as previsões macroeconómicas mundiais apontavam para o forte impacto que esta crise iria ter na economia chinesa. A este respeito, a capa da The Economist de 24 de outubro de 1998 (ver abaixo) ilustrava a economia chinesa a ser sugada para o fundo de um remoinho, metáfora da crise financeira asiática. No entanto, a economia chinesa apenas observou um ligeiro abrandamento, tendo registado um crescimento médio surpreendente de 7,8% em 1998 e 1999, e apresentado uma taxa média de crescimento de 10,4% na década que se seguiu.
Em segundo lugar, o recente abrandamento da economia chinesa. Este é devido (i) quer ao abrandamento dos ganhos relativos de produtividade próprios de níveis mais elevados de rendimento explicado pelas teorias económicas de convergência; (ii) quer aos efeitos intrínsecos da mudança de modelo de crescimento, de um modelo baseado na industrialização e nas exportações a um outro de serviços e de consumo privado doméstico. O debate macroeconómico sobre a China tem-se dividido entre aqueles que anteveem um hard landing e um soft landing da economia chinesa, isto é, entre aqueles que projetam um abrandamento acelerado do ritmo de crescimento chinês para os níveis médios observados nas economias da OCDE e aqueles que estimam um abrandamento gradual e progressivo. As duas grandes fragilidades atuais da economia chinesa, nomeadamente o endividamento do setor privado e a bolha no setor imobiliário tem sido os principais fatores apontados a este respeito pelos defensores do hard landing. Contudo, e de forma surpreendente após uma década de abrandamento gradual contínuo da economia chinesa, a taxa de crescimento real do PIB chinês acelerou em meados de 2017. A taxa anualizada de 6,9% reportada no segundo trimestre do ano é superior aos 6,7% registados em 2016, e significativamente acima das previsões dos principais organismos internacionais (por exemplo, o FMI apontam para 6,6% em 2017 e 6,2% em 2018). As exportações cresceram em junho a uma taxa anualizada year-on-year de 11,3% (motor externo), mas a taxa anualizada de crescimento real year-on-year das vendas de retalho cresceu também no mesmo mês acima dos 10% (motor interno).
Em jeito de conclusão, concordo com economistas como Stephen Roach, antigo diretor da Morgan Stanley para a Ásia, que têm defendido a existência de uma tendência para menosprezar a resiliência e a capacidade intrínseca de se autoalimentar da economia chinesa. A ótica com a qual olhamos para a economia chinesa continua a ser a mesma com a qual olhamos para as economias da OCDE, sem colocar na equação as especificidades próprias de uma economia centralizada de mais de 1.300 milhões de indivíduos, com taxas de poupança de 45%, com mais de um terço das reservas cambiais globais e com uma população ávida de adotar padrões de consumo mais sofisticados. Por exemplo, (i) o ritmo de crescimento do e-commerce na China não é comparável ao observado noutras economias e o seu impacto merece considerações específicas, ou (ii) a despesa em investigação, desenvolvimento e inovação da China já supera a da União Europeia.
Quanto ao fraco desempenho dos indicadores das Bolsas chinesas, a China é há algum tempo reconhecida como tendo uma excecionalmente fraca ligação com o crescimento da economia real. Em primeiro lugar, as Bolsas chinesas são apenas responsáveis por cerca de 5% do financiamento das empresas e por 2% do investimento em ativos fixos da economia, níveis significativamente aquém dos observados noutras economias desenvolvidas ou emergentes. Em segundo lugar, as Bolsas são uma das áreas nas quais a China se encontra mais atrasada em relação ao resto do mundo. Estas instituições funcionam na China de uma forma muito diferente (e muito menos profissional) à observada nas principais praças financeiras do mundo. Apenas 15% dos investidores em bolsa na China são profissionais financeiros. A maior parte destes investidores são captadores de poupança privada cujo mérito circula de boca a boca, os denominados “Mom and Pop investors”, que olham para a Bolsa como uma espécie de jogo de azar, sem ter grande atenção aos fundamentals da economia, e com posições financeiras altamente alavancadas.